Cruzando o espaço numa nova empresa, desta feita, a de procurar novas energias noutros planetas, um spacecraft engineer depara-se pela primeira vez com uma cicatriz que nunca vira numa sua colega. Situava-se ao pé do lóbulo da sua orelha esquerda, junto ao colarinho de um branco impecável, dentro do fato cinzento e amarelo.
“Quando chegar à Terra, vou tentar...o que tenho eu a perder?” – pensa.
Ela dá-lhe os gradientes enumerados da análise geológica da última paragem, enquanto pensa “Tenho de contar a verdade ao chefe assim que o vir!”
Na cena seguinte há um plano geral da nave cada vez mais pequena há medida que a câmara faz um zoom out e vemos um enorme meteorito a seguir o seu caminho, em direcção à nave.
Sunday, October 21, 2007
sonho I
Sai de casa e bate com o carro numa esquina de um passeio. Assarapantado, abre a porta do carro e dirige-se já em força contra o passeio. Dá-lhe um pontapé e o passeio começa a moldar-se, transformando-se na parece branca de uma casa-de-banho. Os azulejos brancos intercalam-se com os azúis e motivos náuticos. Não reconhece a casa-de-banho mas vê um elefante de marfim verde. E sabe de quem é esse elefante.
Acorda. A última imagem que retém é a de um sinal de trânsito numa esquina: beco sem saída.
Acorda. A última imagem que retém é a de um sinal de trânsito numa esquina: beco sem saída.
A dispersão da vida
O tempo e o espaço existem para que haja movimento. O caminho que fazemos. Quando vamos até ao café para continuar o usual, o familiar, esperamos que tudo decorra como ontem, anteontem e até mais atrás. Anos foram precisos para criar esse quotidiano que fisicamente empalidece em interesse um outsider mas que dentro de nós é tudo.
Todavia, um dia acordamos e começamos esse caminho para descobrirmos que algo mudou.
Aproximamo-nos, estão lá pessoas e, no entanto, algo não está bem. Enquanto nos sentamos, esse barqueiro que se mantém fiel à barca e ao rio que atravessa entre o balcão e as mesas dirige-se a nós trazendo-nos o café. Descobrimos que os nossos sentidos não devem estar a funcionar porque o líquido sabe, realmente a... café. O gesto automático do braço impõe-nos o jornal e procuramos descortinar se nas suas parangonas nos solucionam o químico mistério do café. O jornal, com desdém e superioridade, devolve-nos o mesmo olhar estranho que lhe damos. Pesquisamos o ambiente circundante, disfarçando o enorme incómodo que se apossa lenta e insidiosamente na nossa alma. Que ninguém repare, esperamos.
Todavia, ninguém repara porque não está vivalma que pudesse saber ver-nos.
Tal como personagens numa peça (interessantíssima, suspeitamos nós) continuam os seus papéis respeitando as didascálias e as falas que sabem de antemão, ensaiadas ontem, anteontem e até mais atrás.
Situamos a cena no racional: entramos no decorrer doutra peça, falhamos a entrada hoje. Amanhã será diferente. Vamos dormir e esquecer e decerto que amanhã voltaremos a entrar no momento certo ou mesmo na nossa peça. Estará lá R a ler o jornal e a falar das sessões especiais de cinema que verá, J discutirá sempre como se fosse a primeira vez até onde a acção da nossa vontade é livre, saberemos se o trabalho sobre Montaigne de N foi bem recebido pelo professor da cadeira, da exposição ou da peça que alguém fará, das festas que estão para acontecer, C e D estarão a fumar e a falar do Bloco enquanto o joelho dele toca ao de leve a perna dela e ela a passear a sua mão pela manga da camisola dele (e quanta profundidade estará ali à nossa vista nesse pequeno passeio!) e outras participações especiais, intensas como cometas e por isso efémeras, também comporão a aguarela. Sim, é verdade, amanhã será diferente!
Inteligentemente, o leitor deste texto calculou já que o amanhã não virá. Naturalmente, lembrar-se-á de já ter ouvido aquela máxima “Não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio” , pois corre sempre. A personagem da história é que não se lembrou disso, não é? Incauta, ela voltou ao mesmo café. E se calhar estavam as mesmas pessoas da peça do dia anterior e ela acompanhada pelo mesmo mal-estar, incómoda sensação de estranheza. Ela é persistente e continuará a tentar ver se o seu café regressa à mesa.
E um dia acordará e não irá mais aquele café. Pensará que se lá não for não terá de se confrontar com aquele travo amargo não de cafeína mas o verdadeiro, o da tristeza, o do vazio com que se fica quando se banhou no rio da felicidade.
Vestirá indiferença durante o dia e à noite surgirá, às vezes, uma teimosa menina vestida de verde. E quando adormecer, essa menina trará encenações da nossa pequena peça de felicidade pretérita. De manhã, os sonhos adormecerão na almofada. E a personagem levantar-se-á mais cansada com os vestígios desse passado na memória do coração.
Aliás, durante algum tempo decidirá odiar e negar a importância desse café.
Assim dito, a personagem voltará a esse café em 2008. O conflito arruma-se rápido com o salto de rompante para o precipício disfarçado de coragem cega. Sorrirá timidamente para o barqueiro, com a menina dentro de si em bicos de pé para ver se ele a reconheçe. E, no sorriso dele, a personagem perceberá as saudades que tem daquele café que, não tendo o exacto sabor de outrora, contém uma especiaria interessante e nova: o sentido de tudo isto. Sairá feliz nesse dia soalheiro, verdejante pelas folhas das árvores e pelo seu brilho nos olhos. Afinal, a Primavera volta todos os anos. Durante a tarde encontrará alguém e contará o que sucedeu neste tempo todo. A sua vida continuará, plantando raízes noutros cafés que os seus pés encontrarão para descansar. Muitas das vezes, entrará na sua peça, a tempo e tudo! E noutras vezes reconhecerá a peça de outros e dar-lhes-á o devido protagonismo e ribalta.
Às cinco horas da tarde do seu septuagésimo quarto Inverno, ao lado do seu filho mais novo, pedirá um café que lhe surgirá castanho-torrado cobrindo o enegrecido sabor que espera. Pegará nele, mas já não o beberá. Numa fracção de segundo, a sua mente levá-lo-á para o primeiro de todos os cafés. O ruído, os olhares cúmplices, as saudações iniciais e as questões habituais, o café trazido à mesa e a discussão a acender-se. Cada uma das pessoas a ter de se ir embora, porque têm aulas, porque vão trabalhar, por isto ou por aquilo. E dos jogos “Logo às 7.”, dos “Até já!” ou “Bom fim-de-semana!”. E lembrar-se-á das primeiras duas vezes em que chamou o empregado e lhe disse: “O meu é descafeinado, se faz favor!”.
Os olhos brilharão um pouco mais antes da mão perder o tónus muscular e do copo cair com toda a sua força no chão entornando o seu negro conteúdo pelo tapete azulado.
Lá fora, recomeçará a chover.
Mas, por agora, permanece a sensação de que algo fica, sem saber bem o quê, e de que os nossos vazios esperam esses barqueiros que nos vão reconhecendo e às nossas peças. Hoje, ela tem outros planos. Decide tomar um chá enquanto vê um oldie na televisão. Ou mesmo começar um livro. Ainda não sabe, mas encontra-se levemente feliz.
Todavia, um dia acordamos e começamos esse caminho para descobrirmos que algo mudou.
Aproximamo-nos, estão lá pessoas e, no entanto, algo não está bem. Enquanto nos sentamos, esse barqueiro que se mantém fiel à barca e ao rio que atravessa entre o balcão e as mesas dirige-se a nós trazendo-nos o café. Descobrimos que os nossos sentidos não devem estar a funcionar porque o líquido sabe, realmente a... café. O gesto automático do braço impõe-nos o jornal e procuramos descortinar se nas suas parangonas nos solucionam o químico mistério do café. O jornal, com desdém e superioridade, devolve-nos o mesmo olhar estranho que lhe damos. Pesquisamos o ambiente circundante, disfarçando o enorme incómodo que se apossa lenta e insidiosamente na nossa alma. Que ninguém repare, esperamos.
Todavia, ninguém repara porque não está vivalma que pudesse saber ver-nos.
Tal como personagens numa peça (interessantíssima, suspeitamos nós) continuam os seus papéis respeitando as didascálias e as falas que sabem de antemão, ensaiadas ontem, anteontem e até mais atrás.
Situamos a cena no racional: entramos no decorrer doutra peça, falhamos a entrada hoje. Amanhã será diferente. Vamos dormir e esquecer e decerto que amanhã voltaremos a entrar no momento certo ou mesmo na nossa peça. Estará lá R a ler o jornal e a falar das sessões especiais de cinema que verá, J discutirá sempre como se fosse a primeira vez até onde a acção da nossa vontade é livre, saberemos se o trabalho sobre Montaigne de N foi bem recebido pelo professor da cadeira, da exposição ou da peça que alguém fará, das festas que estão para acontecer, C e D estarão a fumar e a falar do Bloco enquanto o joelho dele toca ao de leve a perna dela e ela a passear a sua mão pela manga da camisola dele (e quanta profundidade estará ali à nossa vista nesse pequeno passeio!) e outras participações especiais, intensas como cometas e por isso efémeras, também comporão a aguarela. Sim, é verdade, amanhã será diferente!
Inteligentemente, o leitor deste texto calculou já que o amanhã não virá. Naturalmente, lembrar-se-á de já ter ouvido aquela máxima “Não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio” , pois corre sempre. A personagem da história é que não se lembrou disso, não é? Incauta, ela voltou ao mesmo café. E se calhar estavam as mesmas pessoas da peça do dia anterior e ela acompanhada pelo mesmo mal-estar, incómoda sensação de estranheza. Ela é persistente e continuará a tentar ver se o seu café regressa à mesa.
E um dia acordará e não irá mais aquele café. Pensará que se lá não for não terá de se confrontar com aquele travo amargo não de cafeína mas o verdadeiro, o da tristeza, o do vazio com que se fica quando se banhou no rio da felicidade.
Vestirá indiferença durante o dia e à noite surgirá, às vezes, uma teimosa menina vestida de verde. E quando adormecer, essa menina trará encenações da nossa pequena peça de felicidade pretérita. De manhã, os sonhos adormecerão na almofada. E a personagem levantar-se-á mais cansada com os vestígios desse passado na memória do coração.
Aliás, durante algum tempo decidirá odiar e negar a importância desse café.
Assim dito, a personagem voltará a esse café em 2008. O conflito arruma-se rápido com o salto de rompante para o precipício disfarçado de coragem cega. Sorrirá timidamente para o barqueiro, com a menina dentro de si em bicos de pé para ver se ele a reconheçe. E, no sorriso dele, a personagem perceberá as saudades que tem daquele café que, não tendo o exacto sabor de outrora, contém uma especiaria interessante e nova: o sentido de tudo isto. Sairá feliz nesse dia soalheiro, verdejante pelas folhas das árvores e pelo seu brilho nos olhos. Afinal, a Primavera volta todos os anos. Durante a tarde encontrará alguém e contará o que sucedeu neste tempo todo. A sua vida continuará, plantando raízes noutros cafés que os seus pés encontrarão para descansar. Muitas das vezes, entrará na sua peça, a tempo e tudo! E noutras vezes reconhecerá a peça de outros e dar-lhes-á o devido protagonismo e ribalta.
Às cinco horas da tarde do seu septuagésimo quarto Inverno, ao lado do seu filho mais novo, pedirá um café que lhe surgirá castanho-torrado cobrindo o enegrecido sabor que espera. Pegará nele, mas já não o beberá. Numa fracção de segundo, a sua mente levá-lo-á para o primeiro de todos os cafés. O ruído, os olhares cúmplices, as saudações iniciais e as questões habituais, o café trazido à mesa e a discussão a acender-se. Cada uma das pessoas a ter de se ir embora, porque têm aulas, porque vão trabalhar, por isto ou por aquilo. E dos jogos “Logo às 7.”, dos “Até já!” ou “Bom fim-de-semana!”. E lembrar-se-á das primeiras duas vezes em que chamou o empregado e lhe disse: “O meu é descafeinado, se faz favor!”.
Os olhos brilharão um pouco mais antes da mão perder o tónus muscular e do copo cair com toda a sua força no chão entornando o seu negro conteúdo pelo tapete azulado.
Lá fora, recomeçará a chover.
Mas, por agora, permanece a sensação de que algo fica, sem saber bem o quê, e de que os nossos vazios esperam esses barqueiros que nos vão reconhecendo e às nossas peças. Hoje, ela tem outros planos. Decide tomar um chá enquanto vê um oldie na televisão. Ou mesmo começar um livro. Ainda não sabe, mas encontra-se levemente feliz.
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